sábado, 20 de agosto de 2011

Do outro lado do espelho




Às vezes, os lugares tornam-se especiais devido a pormenores que quase passam despercebidos, e não pelas grandezas em que todos reparam. Não admira, por isso, que, para algumas pessoas, a imensidade do mar se torne irrelevante perante a limpidez duma pequena nascente.
Em pleno coração do Vale do Lima, a beleza genuína e peculiar da vila mais antiga de Portugal esconde raízes profundas e lendas ancestrais. Foi a rainha D. Teresa quem, na longínqua data de 4 de Março de 1125, outorgou carta de foral à vila, e foi numa tarde de Agosto que Francisco descobriu nesta vila, uma terra afável e orgulhosa do seu passado, como um espelho pode conseguir mudar uma vida.
Antes de avançar, apenas duas explicações que, provavelmente, seriam desnecessárias, se tivermos em conta as evidências que vão sendo apresentadas. A vila de que estou a falar é Ponte de Lima, a quem chamam também a princesa do Lima. A personagem principal desta história, o Francisco, é apenas uma personagem, e pronto.
A tarde estava solarenga, mas, e apesar de estarmos em Agosto, o calor costumeiro desta época do ano não se fazia sentir. Assim, e porque o momento se propiciava, Francisco e mais um grupo de amigos decidiram visitar uma exposição diferente, e ao mesmo tempo especial, que decorria por essa altura em Ponte de Lima. Era uma exposição de jardins. Sem sombra de dúvida que, e eu posso ter toda esta certeza porque já tive o prazer de a visitar, o que aqueles amigos viram e sentiram jamais sairá das suas memórias, principalmente para Francisco.
As flores com as suas mais variadas formas, cores e perfumes, assim como diversos tipos de arbustos, árvores e demais materiais decorativos espalhavam-se por toda uma área restrita, subdividida em pequenas parcelas ajardinadas bem ao gosto dos seus criadores. Cada um destes fragmentos ornamentais tinha algo de ímpar e até peculiar, mas todos eles estavam bem contextualizados num espaço maior, onde também se podiam ver típicas ramadas de videiras, carregadas de uvas quase maduras, avenidas de limoeiros com os seus frutos tingidos de um amarelo esverdeado, espaços relvados, alguns pontos de água plenos de frescura e outros detalhes a condizer. Em redor deste sítio sazonal, construída pelas mãos de homens com gosto, e sem que o ciúme os tenha afectado, desenhavam-se, no seu tom altivo, as nativas cores desta zona minhota e a calmaria esplêndida do rio Lima. Tudo parecia perfeito. Até o azul do céu tinha mais cor, e a passarada mal se fazia ouvir, para não dividir atenções.
Eu sei que esta vila do Minho é detentora de uma rara beleza, derivada de raízes romanas e medievais, esculpida em rostos com memória e amassada em sabores de qualidade, para além de muitos outros pormenores contemporâneos. Mas nessa tarde, o que mais se evidenciou aos olhos de Francisco, a personagem evidenciada nesta história, foi esta exposição, e mais concretamente um dos pequenos jardins que compunha esta combinação de arte e cor. Um jardim que, e para além do que é habitual encontrar em sítios como este, tinha plantado nas suas bermas espelhos. Não eram espelhos normais, daqueles que mostram as certezas dos homens ou ajudam a reparar as imperfeições das formas. Eram espelhos que alteravam as aparências, tornando-as mais disformes ou menos disformes. Tornando os mirones, e dependendo da sua posição, mais gordos ou mais magros, mais altos ou mais arrochados, e por aí fora. Quer isto dizer que este jardim, de que não memorizei o nome do seu autor, mostrava o contexto conforme o ponto de auscultação. Quer isto dizer que este jardim, de que não memorizei a nacionalidade do seu autor, mostrava a conjuntura consoante o sítio de observância. Francisco também reparou nesta leviandade criativa tão fora de propósito e gostou do que viu.
Antes de continuar, e porque me sinto na obrigação de o fazer, quero evidenciar que nem todos somos iguais, e que os gostos se podem ou não discutir. O que para um de nós pode ser natural e vir a propósito, para outro pode ser fútil e sem qualquer sentido. Voltemos à história.
Tanto Francisco como os amigos acharam interessante aquela maneira diferente de esboçar um jardim, envolto na singularidade dos seus espelhos E divertiram-se imenso com o que eles reflectiam. Muitas posturas se lhes ofereceram e o resultado roçava sempre o sorriso e até a gargalhada. E curioso como a intelectualidade humana se reduz, por vezes, ao caricato dos instantes!
A primeira imagem do Francisco foi assustadora e ao mesmo tempo engraçada. A sua estatura de um metro e sessenta e cinco, acompanhada de um peso de noventa e tal quilos, o que nos parece demasiado, tendo em conta a sua altura e idade, mostrava-se, agora, ainda mais descomunal e até aterradora. Algum tempo foi passando e muitas outras posturas se experimentaram. O pasmo e a alegria iam sendo gerais e, por momentos, as flores iam perdendo o seu perfume.
A certa altura, e porque já estava escrito no destino da tarde, do outro lado do espelho surgiu um reflexo encantado que imobilizou Francisco. Bem do outro lado do espelho assomou uma figura esbelta e de porte quase atlético, mas com um rosto de traços conhecidos, mas demasiado sério para a ocasião. A nossa personagem principal ficou algo atarantada com o que os seus olhos lhe estavam a evidenciar. Instintivamente, escondeu-se no adormecimento que escorreu do seu íntimo, e nem reparou no chilreio espontâneo de um pardal, pousado num ramo qualquer, que não interessa determinar. Passados um ou dois minutos, pegou no seu olhar e atirou-o para a realidade quase obesa do seu corpo, e não disse nada. Depois, voltou a reparar na irrealidade que o espelho lhe ofertava e, numa atitude envergonhada, espetou com o seu silêncio na face do espelho, e disse:
- Eu podia ser igual a ti, mas …
No preciso instante em que estas palavras iam ter continuidade, a voz de um dos amigos que acompanhavam Francisco nesta visita à exposição dos jardins de Ponte de Lima, alertou-o para a necessidade de continuar, pois já se fazia tarde. Como era de esperar, do outro lado do espelho tudo se apagou.
Será que esta história acaba aqui?

Carlos Afonso


quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Amanhã




Amanhã, quando eu morrer,
Não chorem sobre o meu peito
Nem colham memórias de mim!

Peço apenas uma flor
Colhida ao nascer do dia
E pousada na apatia do meu corpo
Antes de um novo caminho me levar.

Amanhã, quando eu morrer,
Não falem daquilo que fui
Nem usem sinais de dor!


Peço apenas uma história
Escrita com um final feliz
E contada ao silêncio do meu rosto
Antes de um novo gesto me encontrar.

Amanhã, quando eu morrer
As aves voltarão ao lugar onde eu nasci…